sexta-feira, 6 de junho de 2008

CINEMA INSPIRAÇÃO


[ A tela inter e transdisciplinar de Júlio Bressane ]


Texto de Ivan Ferrer Maia

[ texto publicado no site publicado no site http://www.viraweb.com.br de 15/10/2003]



O cinema, enquanto linguagem artística, tem servido a muitos designers como fonte de inspiração criativa, sejam pelas imagens, diálogos, sons, roteiro ou montagem. Por esse motivo, falemos de um cineasta brasileiro, ou melhor, de três filmes deste cineasta: Mandarim, Miramar e São Jerônimo, que servem - e muito - para o delírio criativo. Para quem ainda não assistiu, aconselho ir à locadora. Assistir apenas uma vez a qualquer filme de Bressane, com certeza, não vai ajudar muito na inspiração artística. Os filmes de Bressane são cultos - cinema hermético. Ele mistura literatura, história da arte, música e outras áreas do saber. Por isso, assista-os mais de uma vez. Algumas cenas de Bressane são sublimes, com forte concepção espiritual, típico do cineasta russo Sokúrov e as seqüências de nuvens de Godar. Peixoto questiona: como representar o irrepresentável? Bressane respeita o tempo da imagem, congela cenas e enquadra closes da paisagem natural e urbana, intercala sons e imagens e reconstitui o novo estado da arte. Em alguns momentos o plano ganha perspectiva no molde Neoclássico. Em outros, a câmara se articula em panorâmicas, travellings e conturbados plongées e contra-plongées diagonais e verticais.



No filme Mandarim, contemplamos de forma peculiar um período da história da música brasileira, na cidade do Rio de Janeiro. Entre o niilismo e a paixão pela música, o filme mostra Mário Reis como o pivô da música moderna, no Copacabana Palace, onde é o ícone da aristocracia musical. Estão presentes Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa e Edu Lobo. Mandarim possui imagens com referencial compositivo clássico. A poética visual é mais linear, clara, com pontos de fuga. Há imagens metonímicas de closes da arquitetura Neoclássica do Rio de Janeiro. Em Miramar vemos a jornada intelectual, sentimental e artística de um jovem, a fim de se tornar cineasta. Seria uma autobiografia? A literatura é explicitada fortemente. Ora declamada, ora em forma de poesia visual - o Conto Nono dos Lusíadas de Camões, a Boca do Inferno de Gregório de Matos, os Hai Ku e Hai Kai orientais. Podemos até fazer uma analogia com Verbo Intransitivo de Oswald de Andrade, quando o jovem Miramar escapa dos desejos inusitados de sua professora, sob o fundo musical “mamãe eu tomei bomba”. É um filme cômico e provocativo. O cineasta experimenta a combinação de linguagens distintas. Trechos de filmes, textos clássicos, sons e imagens dissociantes, como a seqüência de dez minutos, falada em inglês, sem legenda. Hélio Oiticica dialogando com Haroldo de Campos comentou que: “em Matou a família e foi ao cinema, quando as pessoas estão falando e não sai voz, o silêncio tem a mesma importância que a coisa falada. Isso tem uma relação com aquela coisa de o John Cage usar o silêncio como algo elementar, que nada tem de cinema mudo”.



Diante das cenas / poesias visuais de Miramar, somos atraídos a transcrever um verso da Balada da Moça do Miramar do poeta Vinícius, onde explora seu metro favorito: a redondilha maior (verso de sete sílabas métricas):



“De noite é a lua quem ama



A moça do Miramar



Enquanto o mar tece a trama



Desse conúbio lunar



Depois é o sol violento



O sol batido de vento



Que vem com furor violeta



A moça violentar”.



A redondilha maior de Vinícius se cruza entre o vai e vem das imagens de Bressane. Imagens em reverso de ondas espumantes do mar e sons de ventos contemplam uma poética visual que nos confunde ludicamente, retomando os olhos de ressaca, oblíquos e dissimulados de Machado de Assis. Pode o passado retomar a forma do novo? No cinema de Bressane, a história transcende o tempo, ganha linguagem contemporânea e recupera a memória. Bressane destrói e reconstrói a memória em São Jerônimo, um filme conturbado, teatral, visceral, antítese da polpa, estética do osso, que em alguns momentos recordamos Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Diz Bressane do filme São Jerônimo: “aí já estamos no filme. Um filme que misture intolerância de Griffith, o deserto de John Ford, Greed de Stroheim e o Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini”. A fotografia de José Tadeu é virtuosa. O cenário é de pedra, em tons de amarelo, paisagem rústica, quente. Em outros momentos, terra gândara e áspera. Um ambiente genuinamente nordestino, remetido ao tempo romano. Jerônimo caminha pelo deserto atormentado pela dúvida: seguir o pensamento pagão de Cícero ou do Cristianismo. Escolheu o segundo, levando-o ao punctum, ao quiasma entre a defesa da castidade e os seus desejos. Bressane embaça, confunde, distorce e difusa os ideais maniqueístas. Intercala cenas, lembrando o interseccionismo utilizado por Fernando Pessoa. Vemos tal intersecção em vários filmes de Bressane, como em Matou a família e foi ao cinema, no qual as mulheres se amam enquanto seus maridos militares praticam a tortura. O filme é uma janela da época, o momento em que o cineasta e o Brasil viviam. O filme São Jerônimo, além de ser uma aula de estética, é um tratado de semântica. Bressane retoma a importância de Jerônimo para o Cristianismo no ocidente, quando traduziu a Bíblia do Hebraico e do Grego para o Latim, defendendo que toda tradução é uma nova criação. Jerônimo elaborou mais de 380 neologismos e modernizou a língua latina. Nas palavras de Bentes: "o cineasta constrói uma analogia entre o trabalho pioneiro, experimental e monumental de São Jerônimo como tradutor da Bíblia Latina, a vulgata e a experiência do monge no deserto, seu inferno e paraíso, não-lugar, página em branco que produz cegueira e visão4".Em Bressane, o diálogo cede espaço ao discurso e o torna polido, lustroso e polirrítmico. Everaldo Pontes e Hamilton Vaz Pereira dividem o discurso com o silêncio sublime e o som ecoante dos ventos.O épico é transversal em São Jerônimo, da encasquilhada Roma Antiga para Caravaggio, que é citado constantemente durante o filme. Bressane capta o espírito das pinturas do artista barroco e as transforma em imagem cinematográfica. Caravaggio transforma suas pinturas em um constante conflito entre mundano e o sublime. Ele contrapõe o valor moral da prática com o valor intelectual da teoria. As pinturas de Caravaggio são encrespadas de viscosidades, rugosas e um tratamento de luz que seria denominado por tenebrismo. Suas pinturas de São Jerônimo mostram um monge compenetrado na sua tradução, emergido na razão, sem fazer suscitação ao sagrado.









CARAVAGGIO, Michelangelo Merisi da.San Jerónimo escribiendo, 1906, 112 x 157 cm.Roma, Galleria Borghese.

O filme recorre a outros períodos da História da Arte. O enquadramento da grande pedra remete a um vazio metafísico de De Chirico e o simbolismo de Dali. São Jerônimo é repleto de cenas surrealistas, que também abrem oportunidades para interpretações psicanalíticas. As grutas e as pedras ganham forma feminina. Ao mesmo tempo em que Jerônimo defende a castidade, ele se rasteja como um réptil entre as pedras e se paralisa na abertura das grutas. Havia tortuosas pedras no caminho de Jerônimo. O cinema de Bressane é inspirador! Inspira a ponto de fazermos expirar novas criações. Quem tem dificuldade em traduzir uma linguagem artística para uma outra assista Bressane, pois verá música se transformar em imagem, fotografia tornar som, pintura se movimentar, teatro virar pintura. Delírio cult! Inspira ação ao designer!


IVAN FERRER MAIA Doutorando em Multimeios / UNICAMP, Designer, Diretor Pedagógico da COOPERCAMP, Reitor e Professor da UEMG, docente das disciplinas de Metodologia Científica, Arte e Sociedade, História da Arte e Turismo Cultural. Especialista em Criatividade, Cultura Visual e Tecnologia Digital.

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